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O Triângulo das Cuecas: "O Homem que foi para a América para fugir da própria Sombra" II

Tuesday, April 29, 2008

"O Homem que foi para a América para fugir da própria Sombra" II

A memória fez o tempo recuar mais de vinte anos, até à criança que um dia fora. De repente o homem era o menino sentado no colo da avó, lambendo manteiga dos dedos depois de um lanche preparado com carinho.
As tardes passadas na casa dos avós sempre foram das suas melhores recordações de infância, onde brincava e mais tarde onde curava as feridas quando vinha da escola, entre os beijos e mimos da avó e as palavras sábias do avô, mais ausente que presente e cujas frases muitas vezes eram ditadas por uma sabedoria Bêbeda de vinho carrascão da tasca da esquina.
Desde cedo começaram os seus problemas com os colegas, primeiro no infantário, mais tarde na escola. Sempre sociável, entabulava conversa com facilidade com os outros meninos. No entanto, o seu estilo mais adulto de conversar rapidamente o destacava dos seus colegas, que o catalogavam como um indivíduo à parte, diferente dos demais.
Entre crianças, seres puros mas ao mesmo tempo incrivelmente cruéis na sua pureza, tudo o que é diferente e estranho não é aceite.
Foi assim que, com tenra idade, conheceu o significado da palavra rejeição e sentiu, na carne e na alma, a dor que ela provoca.
Essa casa dos seus avós foi o seu primeiro refúgio, onde lambia as feridas e limpava as lágrimas antes de se apresentar aos pais, porque "um homem não chora" e "tem que ser forte". Então ele para o mundo não choraria e seria um homem. Punha então na cara o sorriso e na mente as piadas com que se apresentaria mais tarde aos pais, alegre palhaço triste. Dentro ficava o menino, abandonado sem o ser, sem saber quando existir.
Foram assim os seus primeiros anos de escola, escondendo-se e aprendendo aos poucos a lutar e a defender-se com unhas, dentes e o que mais estivesse à mão.
Tinha, no entanto, na rua dos avós aquele que considerava o seu melhor amigo, a quem por vezes chamara irmão.
João tinha um humor muito peculiar, sarcástico, por vezes mordaz demais para uma criança. No entanto o menino achava-o estranhamete parecido a si próprio, pois ambos partilhavam o interesse por história, ciências e música. Amizade iniciada cedo, quase desde o berço, era aquele para quem o menino se voltava quando precisava de um amigo de brincadeiras ou confidências. Os dois anos de diferença não impediam João de ser o líder, apesar de mais novo, e o menino seguia-o cegamente.
O homem do presente lamentava o menino do passado, o início silencioso da sua derrocada como ser humano. Se ele soubesse...
Quantas vezes não tinha o homem, ao ler os seus livros de fantasia repletos de magos em reinos distantes, desejado ter a hipótese de mudar o passado, de voltar atrás no tempo e ensinar à criança que fora a experiência do homem que hoje era. Quantas vezes...
Tantas noites que, perdido entre pesadelos, não acorara com a súbita vontade de se esbofetear, mutilar, de alguma forma se castigar pela pessoa em que se tornara.
Não. Não podia, não queria pensar nisso neste momento. Já era mau demais o sentimento constante de falhanço que impunha a si mesmo, a constante flagelação mental e reclusão social.
- Por hoje chega, - disse o homem em voz alta para si mesmo - por hoje basta. E com estas palavras desligou o monitor e aconchegou-se no seu frio, tentando aquecer a alma com cobertores.

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